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O Dia em que o Comboio Real
Parou Sobre a Ponte Seca

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A noite, ao que tudo indica, foi passada num clima de verdadeira azáfama. Ninguém, por um só instante, descansou ou dormiu na Quinta da Igreja, em Durrães. Afinal, ali, na casa do Conselheiro Manuel Inácio de Amorim Novais Leite, primo do também Conselheiro e Ministro José Novais, tinha-se vivido a véspera de um dia que prometia ser glorioso e, por isso, teve que se fazer o melhor. Na cozinha, muito provavelmente o lugar mais agitado da casa na noite de 16 de Novembro de 1908, preparava-se o almoço para o dia seguinte e que dali a algumas horas haveria de ser servido ao Conselheiro, mas também ao Rei... Ao Rei de Portugal.

De visita a Viana do Castelo, D. Manuel II tinha aceite o convite de Novais Leite para almoçar em Durrães. Havia, portanto, que ter tudo pronto para que nada faltasse na curta paragem de Sua Majestade por terras do Vale do Neiva. Numa longa visita pelo Norte de Portugal, o monarca chegava finalmente a Durrães a 17 de Novembro, depois de ter visitado Braga no dia 11 e ter regressado ao Porto onde festejou, no dia 15, o seu aniversário, o décimo nono. Como naquela altura os ataques republicanos teimavam em asfixiar ainda mais a monarquia e um reinado que ficou marcado pela queda sucessiva de governos, a paragem em Durrães foi mais uma dor de cabeça para a Guarda Real. Como lembrou ao Jornal de Barcelos Domingos Calçada, escritor daquela freguesia, naquela altura "a maçonaria tentava liquidar o Rei para implantar a república. E esta zona tinha muitos maçons. Havia-os aqui em Durrães, havia-os em Tregosa... Um deles, que tinha um apelido da torre, ao que parece, teve que fugir para África, porque esteve toda a noite a ver se destruía a ponte de ferro (ponte ferroviária entre Tregosa e Barroselas) para matar o Rei ao passar. E, por essa razão, tanto a ponte de ferro, como a ponte seca tinha guardas em todos os pegões."

Na memória de D. Manuel II estavam ainda frescas as recordações do atentado que nove meses antes, a 1 de Fevereiro, tinha vitimado o seu pai, o Rei D. Carlos, e irmão, o Príncipe Herdeiro, D. Luís Filipe. Manuel Buíça e Alfredo Costa, dois carbonários e, muito provavelmente, membros de uma loja maçónica, foram os carrascos dos dois monarcas mortos no ataque do Terreiro do Paço. Na carruagem seguia também D. Manuel II que, só por sorte, apenas foi ferido num braço. A paragem de D. Manuel II em Durrães exigia, portano cuidados redobrados e é então aqui que se dá um dos momentos mais simbólicos da primeira visita oficial do Rei ao Norte do país. Vindo de barcelos, onde parou por breves instantes para ser saudado pela multidão due o aguardava - foi aqui que D. Manuel terá prometido visitar mais tarde a cidade fê-lo em Dezembro desse mesmo ano) - o Comboio Real parou sobre a Ponte Seca. Assim diz Domingos da Calçada, "o Rei estava bem protegido", longe do alcance da maçonaria, "implantada desde a passagem do caminho-de-ferro pelos engenheiros franceses que aqui andavam, já que estes eram maçons." De resto a paragem sobre a ponte para que o Rei almoçasse sem correr grandes riscos de segurança não levantava grandes problemas. O número de comboios a circular na altura era reduzidíssimo - nos finais do século XX apenas cisculavam entre o troço Barcelos e Darque dois omboios por dia - e a Quinta da Igreja, onde o almoço foi confeccionado, ficava a poucos metros da ponte. Por isso, sobre o olhar atento da Guarda Real, que montou segurahnça nos dois extremos da ponte, o almoço foi então servido ao Rei no interior do comboio, presume-se, pelascridas da casa do Conselheiro Novais Leita. Domingos da Calçada crê que assim tenha sido porque "aquela casa era uma escola para as criadas daquela época".

Mas se sobre quem terá servido o almoço ao Rei não existem grandes dúvidas, o mesmo não acontece em relação à ementa. Passados 93 anos, ainda não é conhecido o que é que o Rei comeu no dia em que o Comboio Real parou sobre a Ponte Seca. A duração da refeição também ninguém parece saber exactamente qual foi, embora um correspondente do Jornal de Notícias tenha escrito na altura, citado por Paulo Passos na monografia O Couto de Carvoeiro, que "na passagem por Durrães, parou o comboio cerca de meia hoara, para Sua Majestada acabar de almoçar...". E como o almoço decorreu sem incidentes, a alguns metros mais abaixo, mo apeadeiro de Durrães, Mateus Zeferino Pereira da Silva, senhor da Quinta de Malta, tinha sido escolhido para ensaiar, juntamente com a população que se concentrou no apeadeiro para ver o Rei, os "vivas" a dar ao jovem monarca. Contudo, conta Domingos da Calçada, "presume-se que por motivos de segurança, o comboio não parou, deixando apenas as pessoas a perguntar 'Qual é o Rei?', 'Qual é o Rei'...". Domingos da Calçada está convencido de que "não haviam condições de segurança para o comboio parar", e "se parasse no apeadeiro como várias pessoas estavam a contar, podia ter-se dado um atentado. Portanto, o comboio seguiu sempre e parava, geralmente, nos sítios onde o Rei tinha a Guarda Real a defendê-lo". Menos de dois anos depois de ter estado em Durrães, na tarde de 5 de Outubro de 1910, D. Manuel II e a família embarcavam de forma dissimulada na Ericeira em direcção ao exílio inglês. Na parte da manhã, a implantação de república tinha sido proclamada e a monarquia chegava assim ao fim sem que, no entanto, se tivesse ouvido lamentá-lo. Antes, na visita a Barcelos em Dezembro de 1908, D. Manuel II agradeceu os festejos em honra da sua visita e lembrou desta forma o assassinato do seu pai e do seu irmão: "Povo bondozíssimo deste Minho tão belo e calmosabe sentir e vibrar de comoção ante dores e alegrias; Sabe recordar com merecido horror o execrando crime que me privou de um Rei que era pai bem-amado e de um Príncipe que era meu queridíssiomo irmão, ao mesmo passo afogando em seu coração tão fundas mágoas saúda hoje com entusiasmo e alegria aquele que chamado à sucessão dos seus maiores é hoje Conde e Duque de Barcelos e Rei de Portugal."

Paulo Vila in Jornal de Barcelos

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